domingo, 17 de julho de 2022

DE PAPINHO COM O HORIZONTE

 - Agora não tem mais jeito. O despertador do telefone tocou a segunda soneca de 5 minutos, tenho que levantar ou então vou me atrasar.

A rotina do Valdir é sempre muito apertada. Depois que o despertador do telefone toca, tudo é cronometrado: banho, roupa, café e rua. Não dá pra ficar na janela de papinho com o horizonte tomando café na caneca como nos comerciais de margarina.

O café vai no copo americano mesmo. Preto e por cima de 10 gotas de adoçante pra não sujar nem a colher de chá, acompanhado do que tiver em casa: pão, bolacha, bolo ou nada. Não dá tempo de fazer beiju, cuscuz, panqueca nem ovo mexido, as horas de sono são preciosas demais para serem trocadas por um desjejum decente. Isso é coisa de fim de semana.

No sábado e no domingo, aí sim, dá tempo, só não dá disposição. A padaria é meio longe, mas a preguiça do fazer-sujar-comer-lavar, miraculosamente encurta essa distância e o café é tomado lá mesmo. Sendo assim, raramente o Valdir dispõe dos ingredientes para um desjejum, digamos, doméstico.

Depois dos seus dois compromissos: com o "tigelão" e com o chuveiro, sai do banheiro correndo para o quarto. Abre o guarda-roupas e tira: cueca, calça, camisa polo e um par de meias. E mais uma vez não há tempo a perder. As cuecas são todas boxes, pretas e iguais. As meias idem, - só não são boxes. A calça jeans e a camisa polo, ambas com o logotipo da firma, anulam qualquer indecisão sobre o que vestir.

Quando a porta do apartamento bate às suas costas, ele se lembra da vantagem da maçaneta cega. Puxou a porta, pode ir embora. Já pensou ter que sair com a chave na mão, fechar a porta, trancar a porta e só então correr para o ponto de ônibus tentando enfiar um molho de chave no bolso ou na mochila? Definitivamente a maçaneta cega é amiga do relógio.

Chegando na portaria do prédio, Valdir notou que o portão estava aberto, estavam lavando a lixeira. O síndico do prédio era um senhor já aposentado, muito caprichoso com a limpeza e a organização do condomínio. Sentiu um leve orgulho de morar em um condomínio tão organizado e limpo.

Faltando cinco passos para chegar no ponto, lá vem o ônibus. Era muito comum alguma coisa dar errado na rotina do Valdir: derramei café na roupa, esqueci de levar a toalha para o banho, o assunto com tigelão demorou mais que o "previsto", vesti a camisa ao contrário, achei um pé do sapato mas o outro se escondeu, eram coisas comuns de acontecer.

Mas havia algo de diferente no ar! Tudo estava dando certo e essa sincronia era o prenúncio de um bom dia de trabalho. Valdir entrou no ônibus com a empolgação e a energia típicas dos que batalham de sol a sol pelo pão nosso de cada dia. Um verdadeiro trabalhador brasileiro.

Quando viu que alguns assentos estavam vagos e um deles na janela, perguntou-se o que havia feito de tão bom para merecer um começo de dia tão perfeito. Sua alegria era visível aos outros poucos passageiros. Valdir sentou-se e sacou seu fone de ouvido e sintonizou sua estação de rádio preferida. Era sua estratégia de ouvir boa música sem gastar seu tímido pacote de dados. E assim seguiu Valdir, balançando a cabeça ao som da programação musical do dia.

Desceu do ônibus e começou sua curta caminhada de uma quadra até os portões da empresa. Enquanto assoviava a última música ouvida na estação, guardou os fones de ouvido e sacou seu crachá. Ao levantar a cabeça, já com o crachá pendurado ao pescoço, o que ele viu gelou seu coração por dentro. Os portões da empresa estavam fechados.

Lembrou-se imediatamente dos noventa minutos de ônibus - o tempo de uma partida de futebol. Apesar de já ter entendido o que estava acontecendo, ainda havia dentro dele um fio de esperança de estar errado. Sacou o telefone e olhou, incrédulo, para a tela, onde jaziam três letras, a fonte de toda sua repentina angústia: SAB.

Depois de ficar parado o tempo necessário para trazer sua mente de volta à realidade, começou a caminhar de volta para o ponto do ônibus onde acabara de descer. No caminho ia relembrando os sempre que deixara passar: de segunda a sexta o ônibus sempre demora, e quando passa é sempre cheio. A lavagem da lixeira é semanal e sempre acontece no mesmo dia da semana. E aquela estação de rádio que embalou sua nula viagem, só toca músicas em um único dia da semana: sábado.

Puto pelas 3 horas perdidas na vã viagem, mas ao mesmo tempo feliz pela chegada do fim de semana, passou pela portaria contrariado. Estavam abertas a lixeira lavada e o sorriso de deboche do porteiro. Entrou em casa, fez outro café, pegou do armário sua caneca preferida, encheu-a e foi para a janela ficar de papinho com o horizonte, enquanto soprava, da caneca de café, o calor, e da sua cabeça quente, a lerdeza.

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